Em 1815, um dos mais abastados mercadores de panos da rua das Flores, na cidadedo Porto, era o senhor António José da Silva. E a 23 de agosto do mesmo ano, onegociante da rua das Flores que mais suava, e bufava aflito com a calma, era o mesmosenhor António José da Silva. O senhor António, como os seus caixeiros o chamavam, tinha razão para suar. As bochechas balofas e trémulas, dilatadas pelo calor do estio,ressumavam-lhe um suco oleoso, que descia em regos pelos três rofegos da barba, e vinhaaderir a camisa às duas grandes esponjas, que formavam os seios cabeludos do nossoamigo atribulado.
O senhor Silva, inquieto, e resfolegando como um hipopótamo, passeava no seuescritório. O seu
traje era muito simples: andava de cuecas, e alpercatas de estopa com sola de cortiça. Este vestido, conquanto singelíssimo, e o primeiro talvez que se seguiu ao que trajou Adão no Paraíso, dava-lhe ares dum sátiro voluptuosamente gordo.
O negociante representava cinquenta e cinco anos, bem conservados. No olho direito tinha muita vida; o esquerdo, porém, nesta ocasião tinha um terçolho, e inflamado, de mais a mais, pelo calor.
Além do dito, o senhor Silva estava sofrendo um segundo terçolho no espírito. Era uma paixão, uma paixão da alma, a mocidade na velhice, essa ânsia impotente dum coração que quer romper os tecidos atrofiados de cinquenta e cinco anos para dar quatro pulos em pleno ar.
Quem era a vítima desta paixão impetuosa? Uma menina de quinze anos, que a leitora, enjoada das indecentes cuecas do senhor Silva, pode ver, no segundo andar desta mesma casa, sentada a costurar na varanda, com uma gata maltesa no regaço, e um papagaio ao lado, que lhe depenica os sapatos de cordovão. É uma bonita menina, para quem gosta dum rosto oval, olhos azuis, leite e rosas na face, lábios acerejados e pequenos, dentes como pérolas, olhar alegre e penetrante.
A Filha do Arcediago
Basílio foi primogénito e único. Nascera muito gordo e extraordinariamente volumoso. Tinha a cabeça igual ao restante do corpo, e uns pés dignos pedestais do capitel da irregular coluna. Enquanto ao tamanho descomunal da cabeça, foi isto motivo para muitas alegrias em casa; no parecer daquela mãe ditosa, a grandeza da cabeça era sinal de juízo, e o tamanho das orelhas correlativas sinal de bom coração. O pai, como nãotinha ideias suas acerca de orelhas, abundava nas de sua mulher, posto que de via certa soubesse que um mau vizinho da porta dissera que o seu Basílio era aleijado, e sairia com orelhas de burro, se se demorasse mais três meses no ventre materno. […]
José Fernandes, como o filho tivesse oito anos bem espigados, comprou‑lhe um A B C, e foi levá‑lo à escola. Era a cabeça de Basílio, no dizer do mestre, muito mais dura, e tapada, e maior que a bola de pedra da torre dos Clérigos. Ao cabo de três meses, Basílio já conhecia um o e um i; mas, se lhe tirassem o ponto ao i, chamava‑lhe o.
O mestre seguia o sistema da pancadaria, sistema o mais racional de todos com cabeças daquele feitio. Basílio entrava em casa a chorar, a mãe saía de mantilha a descompor o mestre, o mestre, exauridas as razões, descompunha a Sr.ª Bonifácia, e assim andaram, ora melhor ora pior, até que Basílio aprendeu o abecedário, às direitas, às avessas e salteado.
Aos dez anos, na cabeça do menino, não direi que se fizesse um grande clarão de entendimento, mas seria injustiça negar faíscas àquela pedreneira ferida pelo fuzil da palmatória. Basílio já soletrava, e fazia riscos, tortos é verdade; porém, a Sr.ª Bonifácia, tão vaidosa estava daqueles riscos, que andava mostrando às vizinhas a matéria do seu menino: «matéria», naquele tempo, era o que hoje mais polidamente se chama traslado.
Naquela idade, entre os dez e onze anos, parou de crescer a cabeça de Basílio. Fenómeno, certamente! O tronco e as extremidades avolumaram‑se em boa conformação; a cabeça, porém, ficou esperando o proporcional desenvolvimento das demais partes. Quem deu primeiro por isto foi a discreta Sr.ª Bonifácia, observando que o chapéu braguês dos nove anos lhe ajustava perfeitamente aos onze. Esta razão não é tão judiciosa como parece ao primeiro lanço; o ponto de apoio do chapéu de Basílio eram as orelhas; todos os chapéus lhe assentavam bem, contanto que as orelhas não ficassem inclusas, o que seria impraticável, sem dar ao chapéu a forma de uma canoa transversa.
Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado
São povos muito políticos estes do Minho e muito ciosos das suas prerrogativas constitucionais. Nas eleições deste ano, nos círculos em que a oposição não fez pressão na liberdade das consciências, os eleitores eram brindados com uma pipa de vinho e balaios de rosca à porta da igreja. Cada eleitor comia um pão, levava três nas algibeiras, e um no espaço vazio da consciência que ficava na urna.Em Famalicão os cafés e os restaurantes, em épocas eleitorais, são fábricas de deputados e de bebedeiras.
Padres, cheios de ideias e bifes de cebolada, fazem discursos com largos gestos, aquecendo as imagens com os cigarros que sorvem engolindo o fumo e a gramática num grande desprezo da moral e da sintaxe. São os futuros abades e cónegos. Braga tem exportado alguns oradores excelentes para estes comícios rurais. O povo das feiras escuta- os com atenção palerma, e parece que os acredita tanto nas estalagens como nos púlpitos. A religião e a política deste povo, pelo que respeita à consciência, é tudo o mesmo.
Ecos Humorísticos do Minho
Estas puxadas reflexões era o boticário que as expendia, coadjuvado pelo mestre de primeiras letras, sujeito que sabia mais história romana do que é permitido a um professor da preciosa e capitalíssima ciência de ler, contar e escrever, pelo que o sábio vinha a granjear para a humanidade a ciência, e para ele nove vinténs e meio por dia. E comia o sábio estes nove vinténs e meio quotidianos, e ensinava os rapazes, e sobrava-lhe tempo para ler história! Pudera! Os governos davam-lhe férias grandes ao estômago, em proveito do espírito. Se ele andasse bem nutrido e sucado de tripa, não aprendia nem ensinava coisa de monta. Que a pobreza é o estímulo das maiores façanhas da inteligência. Paupertas impulit audax. Isto que o Horácio faminto dizia de si, acomodam-no os regedores da coisa pública aos professores de primeiras letras; porém, outros muitos versos do Horácio farto, esses, tomam-nos eles para seu uso.
A Queda dum Anjo